sexta-feira

papel aceita tudo



“Continuo te amando”, ia escrito no visor do celular. “Continuo te amando”, solto, sem ponto final.
Viver amando é outra coisa. Continuar amando são outros quinhentos.
Escrever é só escrever, o papel (o visor) aceita tudo, disse um dia lá perdido nos anos alguém a quem ela amou tresloucada, lembrando dele e esquecendo de si. Lembrar dele e esquecer de si: que forma de amor é esta? Amor às coisas da pessoa, seu respiro, amar quando se agacha para pegar uma chave que caiu no tapete, quando se barbeia, quando sai e bate a porta furioso, volta dois dias depois, detonado, camuflado, travado, rendido, sujo.

Será ela é a maior amadora no amor?
Por que pensa que é a melhor que ama?

Teve homenagem em pedra, e se vão anos: na parede de uma curva no centro da cidade, gravou ele o emblema que construíra em madeira como pingente para o colar. Gravou a piche, as iniciais dos dois. Por muito tempo, ficou ali, a história que nenhum jato de lavagem industrial conseguia eliminar. Emblemas não se lavam.
Já o amor... é só abrir a torneira, a água que for irá desmanchar o amor.

Amar com a boca escancarada, mostrando todos os dentes, é o maior perigo de toda a vida. O maior mistério, a vida mesma, ali, acontecendo, e não há recuo. Ao saltar no precipício, em pleno voo se lança a pessoa, desesperada, balançando as pernas no ar. Não existe "ah, não brinco mais", o desfiladeiro é real, pode encolher o corpo, baixar a cabeça para não ver, no entanto, e ademais, todavia, nevertheless... vai se perder de si. O inevitável. O ininventável.

Ninguém aguenta tanta liberdade. Entretanto, quase toda a gente aguenta, se viva. O amor é o salto no abismo, não o esborracho lá em baixo.

O esborracho é provável, mas se souber e quiser levantar o voo, e seguir no firme aumento de sua vida, poderá adiar.
O esborracho.

Que vida não se adia.

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